terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

O dia que durou cinquenta horas


Fez muito calor naquela tarde nublada, em Porto Alegre. Um calor insuportável, abafado, pesado, feito um corpo úmido, grande e indesejado. Um bafo, como dizem. Minha amiga avisara "vai chover muito". Demorou, mas a chuva chegou, atrasada e furiosa, carregada por um vento forte sem direção. Corri a fechar as vidraças. Um estouro, e a luz se foi. Lembrei da janela problemática de um dos quartos, e sim, ela estava solta e prestes a voar noite afora. Fiquei ali, agarrada com ela, no escuro e toda molhada, por intermináveis minutos até conseguir ( mais ou menos) fechá-la. Eu estava sozinha, e de algum jeito achei a força necessária para encaixar a janela, a força que só brota do medo, da solidão e da necessidade. A tempestade demorou quase uma hora, barulhenta, aterradora, com muitos raios, trovões, e mais aquele vento descomunal. Quando parou, seguiu-se um silêncio inquietante e a escuridão. Eu não dormi naquela noite, temendo perder a hora do plantão do dia seguinte, o celular sem bateria e o calor sem trégua, nem um pouco apaziguado pela força da chuvarada. Eu não tinha ainda ideia do que vinha pela frente.
No outro dia bem cedo, o cenário era de guerra. As ruas interditadas por galhos e postes, árvores caídas, carros destruídos, sinaleiras desligadas. O temporal que está sendo chamado de A grande tempestade, atingira, como não é de costume, os bairros "nobres"e o centro da capital de uma forma assustadora. Faltou água e luz para muita gente, e por muito tempo. Eu mesma fiquei mais de cinquenta horas sem energia, sem geladeira, sem telefone e sem conexão nenhuma. No início, eu pensava no calor, em como dormir ventilador e sem ar. Pensava em como sobreviver sem o celular, sem comentar, curtir, interagir. Depois, comecei a me preocupar com o estoque do freezer. Passado um tempo, nada disso era mais importante, ou tão importante.
Muita gente se refugiou em shoppings, outros foram para a casa de amigos e até mesmo para hotéis, privilégio desses flagelados privilegiados que fomos. Eu preferi ficar em casa mesmo, quieta, à espera. Fui dormir quando o sol se pôs e acordei quando ele reapareceu. Li quase um livro inteiro, desci para conversar um pouco com os vizinhos, alguns eu sequer conhecia. O assunto era só um, a luz, ou a falta dela. Caminhei pelo bairro, dimensionando os estragos e pensei na sorte que tivemos, pelo que foi, que ninguém tenha morrido ou se machucado mais gravemente. Ouvi as reclamações ( muitas descabidas) dos ouvintes no rádio de pilha - que ainda tenho. Percebi que, mesmo havendo falhas, e há, principalmente no quesito prevenção e minimização de danos, estava-se fazendo tudo o que poderia ser feito para restaurar. A ordem, a luz, a civilização, dado o tamanho do caos já instalado. Vi caminhões carregados de entulhos, bombeiros, homens em cima de postes, muita gente trabalhando. Não achei direito me queixar.
O tempo se arrastou nesse ultimo domingo de janeiro. Sem pressa, sem tarefas, sem distrações. Literalmente sem nenhuma ligação. Pensei em escrever em um caderno, mas não entendo mais minha letra. Desisti. Me deixei contemplar, cochilar, estar só. Ser só, como sou e estou. Vi pessoas sentadas em cadeiras na calçada, tomando chimarrão como antes. Imaginei casais jantando à luz de velas, conversando sem ruídos, fazendo amor no escuro. Unidos. E desligados, e desligada do mundo, foi assim até a segunda feira chegar.
Ela chegou junto com a luz, ainda bem. Coloquei fora tudo o que estava estragado na geladeira. Passei de manhã pela Redenção devastada. Li no jornal que mais de três mil árvores foram atingidas pela tempestade. E me entristeci então, de verdade. Porque isso sim, é muito triste. Todo esse verde pelo chão, tanta vida destruída, nossos parques e praças arrasados. Isso sim é prejuízo. O resto ( para mim)  foi só um incômodo. Um grande, mas passageiro incômodo.
Que não deixou de ser também, uma baita de uma experiência.

Dani Altmayer


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