segunda-feira, 7 de abril de 2014

Seu Passado a Espera

Romero Britto


Julia gosta de ser uma das primeiras a descer do avião. Tem pavor de voar. Os corredores do aeroporto parecem intermináveis, esquerda, direita, sobe, desce. Está ansiosa, e só não corre porque os saltos, muito altos, não permitem. Maldita hora em que trocou as sapatilhas por aquelas sandálias de tiras. Ainda por cima, os pés estavam doendo, agora. Não duvidava que houvesse uma bolha. Era só o que faltava.
Dois vôos haviam pousado ao mesmo tempo, e a sala de desembarque já estava cheia quando ela chegou, mancando. Foi direto para a fila do banheiro, como sempre. Usar o toalete do avião, só em último caso. Sabia que a prima devia estar furiosa, esperando há mais de uma hora com a bebê de colo. Paciência, que esperasse um pouco mais. Colocou um band aid no pé, prendeu os cabelos, lavou o rosto, examinou-se no espelho: cara de pão dormido. Amassada. Sem tempo para retocar a maquiagem, passou um brilho nos lábios, e saiu.
Há vinte anos não colocava os pés naquela cidade. Desde a formatura. Há vinte anos não o via, desde aquela festa infeliz. Mas o reconheceu imediatamente. Mais cheinho, não gordo, um pouco mais forte. Sempre fora muito magro. Os cabelos grisalhos, ralos, porém a mecha inconfundível, caindo sobre seus olhos, ainda estava lá. Fernando.
Estava preparada para encontrá-lo, na festa, sábado. Não agora.
Voltou imediatamente aos seus 20  e poucos anos, e sentiu o rosto ficando vermelho e quente. Droga de sangue alemão. Tentou escapar para o outro lado da esteira, mas uma criança passou correndo, e a fez desviar, e quase cair. Por cima dele.
- Júlia! Não acredito...
Também ele não esperava este encontro. Segurou-a num abraço apertado, tentando ganhar tempo. O cheiro dela ainda era o mesmo, e esta memória o perturbou.
Soltaram-se, entre constrangidos e emocionados. Ele a examinou com cuidado. Os cabelos mais curtos, mais escuros, ar de mulher. Mudara muito pouco, o tempo fora gentil com ela. Como ele sabia que seria.
Falaram ao mesmo tempo, como se não houvesse outro assunto:
- Fez boa viagem?
Esboçaram sorrisos, embaraçados.
Como numa destas cenas óbvias de um filme ruim, o mundo ficara em silêncio ao redor dos dois. Não haviam programado este encontro e não sabiam o que dizer. O transe foi quebrado com a chegada meio intempestiva de uma garota, que se dependurou no braço do Fernando.
- Sua filha?- pergunta Júlia.
- Não, esta é a Sue Ellen, minha namorada.
 A menina não parecia ter mais de dezoito anos. De mini saia e salto muito alto, equilibrava-se com invejável perfeição, entre a bolsa de grife e algumas sacolas do freeshop. Ofereceu a Júlia um sorriso de dentes perfeitamente perfilados, destes que parecem feitos em série, nos dias de hoje.
Júlia sorri de volta, amarelo, e aproveita a gafe para gaguejar que precisa pegar sua mala e correr, o vôo chegara muito atrasado..
- Eu pego para você, Júlia.
- É aquela vermelha, Fernando, com a fita na alça.
- Nossa, que peso.
- Pois é.
-Você não quer tomar um café com a gente?
- Não, obrigada, olha lá estão elas. Lembra da Clarice, minha prima? Tenho que ir, mesmo. Nos vemos na festa?
- Claro...
- Prazer, Meri Elen.
- Sue Ellen.
- Isso, Sue Ellen. Prazer. Nos vemos no sábado, então.
Júlia manca ao encontro da prima, que a olha com cara de espanto. Abraçam-se, beijam-se, ela pega a bebê no colo. Como cresceu! Seus pés a estão matando.
- Era o Fernando, Júlia?
Ela faz que sim, incapaz de falar. Enquanto se dirigem para o estacionamento, a festa de formatura passa na sua cabeça. A parte de que se lembra. A expectativa, a emoção a valsa. O Fernando com a Cidinha, ela chorando, o uísque importado, o porre, a rejeição. E no dia seguinte, o vestido manchado, o vômito, a cara inchada como salsicha. A amnésia parcial. Solta, e sacode os cabelos, como que para se livrar da lembrança intrusa.
No carro, a prima rompe o silêncio:
- E a Cidinha, Júlia? Não veio? Aquela é filha deles, que bonita!
- Quem, a Peggy Sue? Não, Cla, é a namorada.
- Ah.
Júlia suspira, abre a janela do carro. Faz calor, vai chover. Sempre faz calor e vai chover. Deixa entrar o ar, pesado e úmido. Aspira com força o cheiro de porto, o cheiro de peixe, a brisa do mar.

                                  
                           ***************************
A festa dos vinte anos acontece no mesmo clube do baile de formatura. Uma banda toca músicas dos anos 80-90. Os garçons servem uísque e espumante, mas Júlia recusa. Não tem coragem. De vestido vermelho, e um copo de água na mão, circula por entre as mesas, trocando beijos e memórias. Sem bolha nos pés, por sorte. 
Onze horas, e nada do Fernando e da dita cuja. Não consegue lembrar o nome da piriguete. Talvez ele não venha, afinal. Melhor assim. Pode imaginar a cara dos colegas ao verem os peitos da moça. Praticamente uma criança.  Homens! Uns velhos babões, todos eles.
 Pergunta à Mara pela Cidinha.
- Você não soube, Ju? Ela está com a Simone, lembra da Simone? 
- A caloura?
- Esta mesma. Estão juntas, há anos. Mas elas não vem, moram em Barcelona, com um bebê pequeno, e...
-Fofocando, meninas?- pergunta Fernando,  chegando de surpresa e interrompendo a conversa. Enlaça Júlia pela cintura, e sem lhe dar tempo para recusar, a leva para a pista de dança. 
- Olha a música, "Should I stay or should I go"... não acredito! 
- Bons tempos...
- E a sua namorada, a...?
- A Sue Ellen? Ela não veio.
- Mas...
- Você está linda, Júlia. Mesmo. 
Começa a tocar "Still Loving You ". Os dois sorriem, e se abraçam para "dançar junto.". Ele enfia o nariz no pescoço dela. Ah, aquele cheiro...
Falam, quase simultaneamente:
-É bom estar de volta.
E é mesmo. 
É bom voltar no tempo, às vezes.


Dani Altmayer

Texto- exercício para a Oficina de Escrita Criativa- módulo III











14 comentários:

  1. Às vezes....porque o que era, já foi....
    E as namoradas? Homossexualismo: doença, escolha ou hereditariedade? Comum a "tantas" famílias.

    ResponderExcluir
  2. E o preconceito sera doenca ou hereditariedade ou falta de caracter??? talvez as 3 coisas juntas....
    Eu hein....

    ResponderExcluir
  3. Ah esqueci preconceito , falta de caracter tambem eh bem comum a TANTAS FAMILIAS!!!!!

    ResponderExcluir
  4. Que lindo texto. Que feio o comentário. Infeliz.

    ResponderExcluir
  5. Adorei! Um pouco da vida de todos nós... quem nunca viveu essas lembranças, esses momentos... mto a vida da gente...

    ResponderExcluir
  6. Grosseria: doença, escolha ou hereditariedade?
    Perdeu a chance de ficar quieto seu "anônimo". Provavelmente um enrustido. Ao menos aqui é, pois não tem nem coragem de usar o próprio nome...rsrsrs
    ah, Dani, amei o "cocô de cachorro"! Ficou perfeito. Beijo, te amo, Tina.

    ResponderExcluir
  7. ....quanto recalque nao eh mesmo...pobre ser neh? .comentarios maldosos soh podem vir de alguem muito atormentada....Pessoa atormentada vai rezar um pouco q passa ou vai cagar mesmo.....com certeza algo dentro de vc nao ta legal, a merda de vem de algum lugar!!! pensa nisto? fica em paz....

    ResponderExcluir
  8. Muito bom! Tudo de bom! Teus textos cada dia melhores Dani.E realmente, para "alguns" anônimos, melhor ficar lá no passado. É bom reviver só o que vale a pena. Esta pessoa anônima, do primeiro comentário lá de cima, deve sofrer de um mal que se chama covardia. Possivelmente mal amada. Certamente sem caráter. Pobre infeliz...

    ResponderExcluir
  9. Nao sabia deste teu lado escritora Dani, parabéns, gostoso de ler e quanto aos comentários. .. quem nao se identifica e porque sabe que esta falando bobagem. ..

    ResponderExcluir
  10. Obrigada a todos pelo carinho, anônimo ou não. Carmem Vera, seja bem vinda! Quanto ao (a) autor (a) do primeiro comentário, acho que a vida se encarrega. Que encontre paz.

    ResponderExcluir
  11. Não suporto injustiça, isso realmente me tira a paz. Já que tens telefone e endereço, agora o assunto é entre nós.
    És inteligente, és mulher e sabes que as versões têm dois lados. Deixa eu expor o meu.
    Eu não inventei nada daquilo, afinal, não tenho bola de cristal nem a criatividade de uma escritora. Tudo que ouvi e muito mais, comentei. Motivos? Tenho os meus...que podem perfeitamente serem esclarecidos.
    Agora nós vamos ver quem tem coragem de falar, não somente escrever
    Outra coisa: é fácil se eximir da "mea culpa". Me dá a oportunidade de falar. Estás indignada com a situação do homossexualismo? O preconceituoso não sou eu e, sim, quem teve o prazer de expor o assunto. Nem conheço a tua família, quem me falou foi ele...e tantas outras coisas. Pela que pessoa que parecesses ser, por ser sensível e acolhedora, espero contar com a tua compreensão, por mais que ele me pinte cor as cores mais cinzas e tristes que existem. Aproveito para te pedir desculpas em público. Tenho certeza que és do bem e que mereces estar cercada das inúmeras amizades que tens.

    ResponderExcluir
  12. Alison Guedes Altmayer9 de abril de 2014 às 11:48

    Minha vó sempre dizia que é sempre bom ter um advogado na família.Eu, em 2014, acrescento: é sempre bom ter um advogado e um hacker. Neste caso basta juntar os 2 + o print scr, que por sinal já está no teu e-mail,e dar tratos ao causo. Louco tem tratamento. Mal intencionado tem julgamento.

    ResponderExcluir
  13. Adorei Alison....eh bem isto! e digo mais pessoas mal intencionadas são casos de policia...hoje em dia as pessoas usam as redes sociais como desabafo, pra agredir pessoas que nem conhecem...e acham que tudo bem...Mas precisamos nos proteger, não permitir este tipo de abuso ainda mais de desconhecidos !!! um beijo pra ti e outro pra Dani!! Amiga se precisar tenho uma amigo advogado que cuida de casos como estes e outro delegado...soh falar ja resolvemos estes abusos!! Aninha

    ResponderExcluir