segunda-feira, 31 de março de 2025

Dessas coisas




Visito meus textos antigos, sempre um estranhamento.

Escrever tem disso.
Fica gravado, e não importa se tinha vírgula demais, explicação demais ou excesso de esperança.
Vou por curiosidade, volto com nostalgia.
Envelhecer tem disso.
Quem era aquela eu, quinze, dez, dois anos atrás?
Mais jovem, mais filosófica, prolixa, menos cansada. Com menos rugas.
Prefiro textos a fotos, ambos denunciam o tempo, embora me reconheça mais nessas últimas.
Se as fotos marcam a passagem dos anos, ainda sou eu quem sorri por trás dos óculos.
Risos reais e falsos, sei identificar cada um. Nas fotos, menos nos textos.
Nos escritos me perco um pouco, crônicas datadas, textos de autoajuda estrito senso, coisas de princípio, meio e fim. De quando ainda acreditava em explicação.
Reflexões profundas, de um tempo em que nadava em outras águas, mais escuras. Tentava submergir. O título estranho do meu livro, o amor errado mais certo do mundo. Esse texto ( e esse amor) não enfraquecem em mim. Tem outros que também não. Mas tantos se perderam, nas ilusões passadas. Textos e amores. Obsoletos.
Viver tem disso.
Mesmo o que se perde fica gravado em algum lugar.

Um café e um jornal


 Café passado, ovo e torradas

geleia com gosto de mãe

suco na lista proibida

então não primeira coisa
sua pedra ametista cor

do dia azul cuidado

com viagens longas e

pessoas confusas mais

uma xícara as frutas picadas

nada espanta esse sono

essas noites sem trégua

homem matou mulher

mais um menos uma

as notícias apenas

mudam de endereço

meu time empatou ontem

eu não tenho time algum

outra xícara um vestido

azul nenhuma viagem

mas

pessoas confusas sim

em demasia

segunda-feira, 3 de março de 2025

O não carnaval

 


Segunda feira, carnaval alhures.

Duas crianças, duas histórias. 

Duas mães e a mesma força.

O mesmo brilho no olho.

Não, ninguém "nasceu para ser mãe."

Instinto materno não é universal.

Mas que bonito é ver uma mãe lutando pelo seu filho. 

Um com suspeita pouco fundamentada de autismo, muitas camadas ali- dificuldades escolares, pai doente crônico e teimoso, dependente para tudo, mulher sobrecarregada. 

O guri põe abaixo o consultório enquanto ela fala, então abraça a mãe. Ela chora.

Quem cuida de quem cuida?

O outro apanha no colégio. Eu pergunto por quê, ele me diz que não sabe se é porque é negro, ou porque veio de escola pública. O que eles dizem? Eles dizem que é por eu ser diferente. 

A escola diz que é coisa de criança.

Craque de futebol. A mãe segura firme na mão do menino. Tu é lindo. Eu gosto da minha cor, tá tudo bem, ele responde. Ela sorri.

É carnaval em outros lugares. Confete, serpentina, contrastes. 

Diversidade.

Ah, diversidade. A falta que ela nos faz, no dia a dia.

domingo, 2 de março de 2025

Notas



Abro o caderno de notas

listas de supermercado

farmácia coisinhas

números grandes demais

para serem lembrados

senhas e CEPs se confundem

a lista de livros a ler e os lidos

desse ano, do outro, de antes

nomes de filmes séries poemas

escritos roubados rascunhos

palavras sem contexto espantos

as notas da terapia- editadas

para que não doa tanto mas dói

o bloco que não é de carnaval

nem é fevereiro mas faz calor

e as histórias que contamos

são sempre e apenas tentativas

ainda que

baseadas em vidas reais