sábado, 8 de agosto de 2020

Esquizofrenia




O mundo encolheu e está gravemente doente. 

Hoje li sobre a neve eterna que está derretendo, acho neve eterna tão bonito, tão poético, de um jeito concreto, alto, e abstrato, feito este conceito de eternidade que eu nunca escalei. 

Tem coisas que são feitas para durar, os picos e as cumieiras ( cumeeiras ) que nunca alcançamos, alguns poucos amores, dois ou três livros preferidos, a improvável tatuagem, a música e a poesia do Chico, Caetano, Gil. 

As memórias de afeto são como esta neve. O glacê das montanhas, que, podendo ser permanentes, ainda são passíveis de derretimento e degelo, em condições adversas e sob calor excessivo. 

Estou no plantão. Enquanto não chega um paciente, estudo, escrevo, leio sobre o ainda hipotético mundo pós pandemia, percorro as redes e vejo as lutas de sempre, inglórias e justas, na mesma medida. 

Descubro sem surpresa que o racista de camiseta azul, que ontem uniu direita e esquerda em merecidas notas de repúdio e indignação, sofre de uma doença mental. Esquizofrenia. 

Estamos todos, de certa forma, esquizofrênicos. Neste mundo encolhido, confinados entre as quatro paredes das nossas ideologias, lutando com moinhos, ouvindo vozes dissonantes, travando estas brigas tantas vezes inúteis, insanas, que só fazem aumentar temperaturas, derreter geleiras, causar inundações e aumentar a confusão. 

 Enquanto trabalho, estudo, me canso e sigo, desejo mais do que paciência e empatia, lucidez, sangue frio, discernimento. 

 Penso na paciente de ontem, para quem o ar está em falta há 15 dias, já. Eu a ajudei a subir um lance de escadas. " Virei uma velha, doutora. De uma hora para outra." 

 Ela tem 39 anos, e foi discriminada ao realizar um exame de imagem, porque tem o vírus, como se ter o vírus fosse assim, uma escolha. Ela, que trabalha num supermercado e vive numa casa pequena com mais cinco pessoas. 

Ela não foi a primeira. Vejo quem tem o vírus sendo discriminado até por quem fez o juramento de cuidar, curar, consolar. Lembro da descoberta do HIV e da Aids. (Faz tempo, e foi ontem.) 

Desde sempre, o preconceito. O preconceito, filho do medo, estas doenças para as quais ainda não descobrimos vacina nem remédio. Só há paliativos, e não são suficientes para amortizar tanta dor. 

O mundo encolheu na pandemia. Adoeceu. Está derretendo.

Termino esta crônica confusa, pensando no quão urgente precisamos de algo puro como a neve num pico de montanha. Algo que seja imutável, sólido, constante. Que não se dissolva. 

 E lembro do poema. 

 "É urgente o amor. 

 É urgente um barco no mar.

 É urgente destruir certas palavras, ódio, solidão e crueldade, alguns lamentos, muitas espadas.

É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas, é urgente descobrir rosas e rios e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz impura, até doer.

É urgente o amor, é urgente permanecer." (Eugênio de Andrade)

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