domingo, 2 de fevereiro de 2020

Precavida



     


da série diálogos possíveis...


Fiz oitenta e quatro semana passada, tu acredita? Nem eu, parece que foi ontem que fiquei viúva e já se foram quase trinta anos. Não, para quê? Virar babá de homem na minha idade, eu fora. Uma vez me disseram, e eu concordei, velho só o que fica velho com a gente. Ou isso, ou tem que valer muito a pena, sabe. Era nova, sim. Tive, uns dois ou três, mas cada um no seu cantinho. Só para namorar, mesmo, como dizem, para curtir. Melhor coisa. Dois já morreram, também. Os homens morrem. O outro era um sem-vergonha, esse casou de novo. Não vale um fio daquele cabelo ralo. Teve festa, sim, um churrasco na casa de um dos guris, eu por mim nem comemorava, eles que fizeram questão, foi na beira da piscina, um calor dos infernos, te contei que vou ser bisa em março? Uma menina, esqueci o nome, um nome de velha, parece que é moda agora. Meus exames estão de guria, né? Melhor que de muita gente nova que eu conheço. Eu sempre falo para a minha nora, não é por nada, mas ela é diabética, tem que se cuidar, não dá para ficar enchendo o bucho de carne e cerveja, e depois reclamar que deu tudo alterado. Não tem nem sessenta ainda, mas aquela lá não tem jeito. Meu filho só tem a pressão, mas ele corre, faz academia, é bonito que só vendo, não é por ser meu filho não. Eu sei, a cabeça está ótima, melhor que o corpo, me dói um pouco o joelho, mas o problema mesmo é não dormir direito, queria uma receitinha, se bem que melhorou a insônia agora que comprei o enterro. Como assim, qual? O meu. Sim, comprei o meu enterro, tudo pago. Isso era uma coisa que estava me atormentando, sabe. Agora posso descansar. Não!! Não pretendo, não, bate nessa madeira aí. Mas é uma tranquilidade a mais, doutora. Me dei de presente de aniversário. Credo nada, deixa tu chegar na minha idade. Oitenta e quatro anos. Não é pouca coisa, viu. Ah, e tu sabe como gosto de mexer no computador né, o meu era dos antigos ainda, aqueles de mesa cheio de fios, então me dei de presente um notebook. Foi caro este aniversário, mas valeu a pena. Tu tem feici?- eu te chamo de tu porque tu podia ser minha filha- vou te convidar. Aí tu espia meu filho. Pena que é casado. E o outro é gay. Um dia vou te apresentar ele. O casado. Ah, tudo bem então. Pena, eu fazia gosto. Não esquece a receita, tá, minha querida. Não te preocupa que eu não tomo sempre, só gosto de ter em casa, por precaução. Na minha idade, tu sabe como é. Ou melhor, vai saber. Se chegar lá.


Nenhum comentário:

Postar um comentário