quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Porque eu amei uma mulher que amava o Roberto


Cachoeiro de Itapemirim


Porque eu amei uma mulher que amava o Roberto. Porque fui com ela esperar ele no aeroporto de Rio Grande. Porque fui com ela ao show dele na SAC. Porque vim a Porto Alegre de excursão para assistir mais de um. Fui com ela no Rio, no Canecão. Porque eu amei uma mulher a quem chamava de mãe, que eu amava como amava a minha mãe, mas esta mulher não era, ela tinha uma cor, era minha mãe preta, mas eu não sabia, nem pensava que isso era um problema, porque a cor dela não era a minha, a minha mãe Dolores, de tantos apelidos, a Pia, ela que viajava de avião com a gente para o Rio, quando viajar de avião era caro como é de novo agora, ela que neste mesmo Rio de Janeiro foi barrada ao entrarmos num clube porque não tinha uniforme branco de babá, como assim, ela não era nossa babá, era a mãe preta, ela que não podia entrar pelo elevador social, eu ia com ela pelo de serviço, no prédio à beira do mar, Ipanema classista, indignada pela injustiça, sem a menor consciência de classe ou preconceito, só o que eu compreendia era o amor, e era o amor que dava a ela os mesmos direitos que os meus, ou não dava?
Eu criança e somos todos iguais, Jesus disse e eu acreditava, o colo dela e a risada rouca, as mãos secas de tanta lide, as histórias da infância na roça, a comida de tempero farto, os conselhos tortos, de sabedoria infinita, os discos do Roberto, a cada Natal, que homem lindo, o Benito, as escolas, o samba, cigarro, cerveja. As conversas no alpendre, a dor da perda dela, o neto que ela não conseguiu esperar- partiu três meses antes.
Porque eu amei uma mulher que me ensinou tanto, que me acolheu sempre, que era toda ela aconchego, uma mulher que eu enxergava talvez sem ver, hoje eu paro e penso, e tenho vontade de voltar no tempo e amar diferente, porque hoje eu sei muito mais do que ontem, e muito mais do que há quarenta anos.
Porque eu amei esta mulher e fui muito amada por ela, e sinto que tenho com ela uma dívida impagável.
Porque eu amei uma mulher que amava o Roberto. E ela, com certeza, preferiria conhecer Cachoeiro de Itapemirim à Disney, mas mesmo assim. Que ela tivesse escolha.
Que todos possam ter escolha e nenhum seja excluído.
Porque a dívida é de todos nós.


Daniela Altmayer

Porque desde ontem, de todas as barbaridades ditas pelo ministro, uma frase entalou na minha garganta.

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