domingo, 22 de setembro de 2024

Silentes



Regar as flores

ver brotar as mudas

silêncio de semente

e essa saudade viva

pássaro que não voa

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Fogos




Atrás do parapeito a cortina

distorce o horizonte a névoa
encobre o azul
o sol uma bola de sangue
arde um país e eu

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Pares



Viver em pares

como na arca

sobrevivência

mais vale
a soma
que a solidão

caber ou não
moldes
silenciosos

cotidiano
testemunha
e algoz

dois pra lá
dois pra cá

ímpar
aprendo a dançar
me atrapalho

um passinho atrás
por favor

sábado, 18 de maio de 2024

Das coisas que me tocam


água em todos os sonhos

ontem um homem mostrou
o colchãozinho nas palavras dele
uma televisão de tubo
as coisinhas ele fala no diminutivo entrecortado de lágrimas
as coisinhas molhadas perdidas
de novo
num quartinho que pensava seguro
segundo andar
porque da segunda vez achamos
que estamos preparados
são milhares na soma mas
nenhum número dá conta

da dor de um sozinho

domingo, 5 de maio de 2024

Resgates




 Passei a noite com

Água pelo pescoço

Ele disse
Ele vivo
Outros sem a sorte

Cordões humanos
Esperança em botes
O que nos comove
São os gestos
Os heróis sem nome
A solidariedade em meio
Às águas barrentas
Os sonhos inundados
O que nos entristece

É o descaso a negação
O rio não é o culpado
O vulnerável está sempre
À margem

Vidas partidas feito a casa
Refugiados climáticos
A catástrofe anunciada
Há bem mais de uma geração

sábado, 3 de fevereiro de 2024

We are the world


O ano era 1985 e a década de 80 (1980s) ia ao meio. Que década, senhores. Quem viveu, sabe. Aquela música se tornou rapidinho uma música chiclete, todo mundo sabia cantar, ainda que de um jeito errado. We are the world, we are the children. Ficou quase chata depois, como chato é tudo que se repete demais. Mas foi emocionante no seu tempo. Todas aquelas estrelas, todas aquelas vozes diversas, únicas, unidas por uma canção. Por uma causa. Uma causa que ainda existe. Que persiste. Infelizmente, a fome ainda é um problema para grande parte do mundo. Um problema nosso.

Ontem assisti ao documentário A noite que mudou o pop, que mostra os bastidores da criação e gravação dessa música icônica. Tinha tudo para dar errado, e não deu. Graças à genialidade daqueles artistas, cantores, o arranjador, a produção. Que bom que deu certo.
Viajei no tempo no embalo daquelas vozes.
Lembrei da voz bonita e afinada da minha mãe. Lembrei dos meus 15 anos e da efervescência daqueles anos.
Ao fim do filme, uma fala de Lionel Richie me chamou atenção: the house will be there
But not the people in the house. Algo assim.
Tantos deles já não estão lá. Minha mãe não está mais aqui. Assim, que a casa não é o mais importante. A gente sabe, ou deveria, mas esquece.
Que bom que existem as músicas a eternizar instantes. A nos trazer saudades.
É desse jeito que as luzes da memória se acendem.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

trinta e um




finda o primeiro mês do corrente ano 

nenhuma resoluçâo foi cumprida

ainda que nenhuma tenha sido feita

as palavras seguem de férias nalguma

praia de águas mornas e vento ameno

enquanto eu trabalho sob os arranha-céus

sobre o asfalto quente alguém tem que


ainda assim as promessas de fevereiro

os últimos suspiros do verâo e suas delongas

na minha cidade o céu se pôe infinito 

as nuvens estâo muito perto 

quase dentro

sinto outras saudades e tudo bem assim 

também é bonito


sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Voa, JP




Hoje é dia de celebrar. Celebrar muito mais que a conquista do diploma, celebrar a vitória. Te ver formando, formado. Em direito, e na vida. Mais do que o curso universitário, que é uma baita conquista e é toda tua, o que me deixa mais feliz é te ver preparado. Te saber maduro, ético, generoso e gentil. Teu equilíbrio, teu bom senso que sempre foi bem mais alto do que o meu, mesmo quando tu ainda batia na minha cintura. Teu olhar azul, claro e profundo, enxerga muito além do que se pode ver.

Tua visão de mundo me enche de orgulho. Tua trajetória, idem. Em especial neste ano que passou, de tantas mudanças ( que tu tirou de letra), tantos desafios e êxitos. Ter acompanhado teu crescimento foi um privilégio e uma alegria, e que bom que é estar do teu lado e compartilhar mais esse marco tâo importante.

Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida, uma nova etapa começa, diferente, desafiadora, mas que coisa linda é ver que tu tem a base e todas as ferramentas para construir uma bela história. Que tu possa contar comigo, quero estar por perto, por muitos capítulos ainda.

Uma vez, aos 8 anos, tu me disse que eu tinha sorte de te ter como filho. E nâo é que tu tinha razão?

Parabéns, JP. Tu é um baita cara. Minha pessoa preferida no mundo e o advogado mais gato de 2024. Te amo.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Alguns mais




a seca mata a enchente mata a guerra

mata mais e quem não morre tem sede tem fome tem medo o medo mata o ódio mata se não mata fere sangra arde dói queima inunda a vida esse frágil fio esse frágil rio a desesperança mata se não mata fere
feridos estamos todos alguns muito mais as crianças as mulheres morrem antes ou coisa pior
a mentira mata fere arde dói queima inunda sangra o amor salva cura ameniza atenua dizem mas o amor é coisa rara assim de grande de inteiro de quesito humanidade de cunho de irmão de amor sem fronteira sem rosto sem cor sem pátria sem distinção
desse amor há carestia não há notícia
a religião mata o fundamento mata o preconceito a ganância a estúpida guerra matam se não matam todos ferem e feridos todos estamos alguns muito mais

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Cores


 

É tudo tão branco aqui. Eu acho bonito. Vocês, as enfermeiras, os doutores, são todos muito simpáticos. Nunca estive num hospital antes. Pari os cinco em casa mesmo. A Tonha que me ajudava. O marido ou tava fora pescando, ou na cachaça. A cachaça foi que matou ele, sabe? Morreu cuspindo sangue, nos meus braços. Fiz a cova na beira do rio, pode não parecer agora, mas esses braços tinham força. Foi pouco antes daquela enchente, não lembro o ano. Os meninos já tinham se ido, um para o colo de nosso senhor, o anjo Joaquim, os outros para a capital. Tudo macho, é assim, tivesse parido alguma menina não estava sozinha agora. Tem neto que não conheço. Desculpa se falo demais, tanto tempo que a Tonha se foi, era eu e os cahorros, as galinhas, o gato Tomé. Com o gato Tomé eu conversava bastante. Fiquei triste quando se foi, enterrei do lado do marido. Acho que gostava mais do gato que do Zé. Homem suga a gente, sabe? Ainda mais quando é cachaceiro. Essas rugas aqui, você pensa que é do sol, é da lida na roça. Que nada. Pode não parecer agora, mas eu era a mais bonita da vila. Saí de casa com 15 anos, atrás de homem pescador. Homem pescador não presta, a mãe dizia. Plantei milho e criei galinha a vida toda. Nunca bebi uma gota, tinha o corpo forte que só vendo. Meu vício era só a palha mesmo. Gostava de fumar na varanda, vendo o dia acabar, ouvindo rádio às vezes, às vezes ouvindo a tristeza do rio. Agora os doutores falam que essa doença é disso. Eu acho que é de outra coisa, sabe. Que eu tô magrinha assim é de saudades.
É tudo tão branquinho. Mas é bonito.


Texto para a oficina de escrita

Imagem: Entre folhas, óleo sobre tela, de Augusto Vieira