Pietro nasceu com um defeito na asa esquerda. Quando era bem pequeno, e ainda não tinha penas, ninguém percebera. Nem mesmo sua mãe.
Eles eram cinco irmãozinhos, famintos e gritões, e ela estava muito ocupada em buscar comida o tempo todo para alimentar aquelas bocas escancaradas.
Eles haviam nascido na primavera e moravam em uma árvore florida e cheirosa. Divertiam-se a observar os passantes na rua calma de um bairro de Porto Alegre.
Tinha o seu João, o afiador de facas. Ele se anunciava com um apito longo e agudo, que os filhotes tentavam em vão imitar.
Tinha a Tita e a Tata, as gêmeas que jogavam amarelinha na calçada. Desenhavam, com o giz, um céu lindo de sol e passarinhos.
Tinha a dona Cândida, uma velha mal humorada, e seu cachorro caolho, o Ogro. Ele sempre rosnava para a gurizada que jogava bola no meio fio.
E tinha o Bernardo, o Bê, que passava as tardes rodeado de livros, lendo à sombra da velha árvore.
Era uma vida boa no ninho. Comiam, dormiam e contavam histórias para se inventar.
Inventavam histórias para quando pudessem voar.
Quando suas penas começaram a crescer, Pietro percebeu que tinha uma asa torta. Mostrou para a mamãe, sempre ocupada.
- Não é nada, vai passar.
Mas não passou, e o problema só piorou. Seus irmãos começavam a dar os primeiros voos, bem curtos, de um galho ao outro. E ele sem sair do lugar.
A mamãe chamou o doutor Sabiá, que decretou:
- Esse daí nunca vai voar.
Pietro chorou.
Seus irmãos iam longe já, e voltavam cheios de aventuras e presentes.
Uma minhoca diferente, uma flor, um galho macio. Eram legais com ele.
Mas ia chegar o dia em que não voltariam, e Pietro sabia.
Ele tinha as pernas fortes, de tanto saltar. De vez em quando tentava um pulo para o galho ao lado.
Com medo de que caísse, mamãe não deixava ele se arriscar.
Ele tinha o coração triste, por não sair do lugar.
Estava ficando muito grande para o ninho, agora. Sentia -se apertado.
Já não achava graça de olhar a rua, nem de inventar histórias sem pé nem cabeça.
Queria vivê-las.
Adivinhava o mundo, mas não sabia. Nunca saberia.
Com o tempo, foi se acostumando a ficar.
Os dias eram sempre iguais para Pietro no ninho.
Uma tarde, no fim do verão, ele viu um menino subindo na árvore.
Era o Bê, o garotinho solitário amigo dos livros.
Pietro ficou assustado, a mãe não estava por perto, ele estava sozinho.
Cantou alto, desesperado.
O menino subiu até onde ficava o ninho, e pegou o passarinho com cuidado.
- Coitadinho, tem a asa quebrada!
Bê então, devolveu Pietro ao ninho e desceu. Foi correndo para casa.
A pequena, da porta amarela.
Voltou instantes depois, com um livro e uma maleta na mão.
_ Vou consertar sua asa.
Olhando com atenção as gravuras do livro que para Pietro parecia mágico, Bê fez uma tala, com um pedaço de madeira.
Esticou a asinha estragada.
No começo doeu um pouco, mas depois ele se acostumou. Agora Pietro podia abrir as duas asas e bater, de leve.
- Você pode voar! Tenta!
Ainda com medo, Pietro tentou. Um voo desajeitado, pousou meio de lado, dois ou três galhos mais abaixo.
Encorajado pelo novo amigo, voou e voou, devagarinho e ressabiado.
De lá para cá, e de cá para lá.
De galho em galho até o outro lado.
O sol se punha quando a mamãe chegou, e se assustou com a novidade. Mas ficou feliz.
Pietro estava muito feliz.
Sabia que nunca poderia voar alto. Nem longe.
Não se importava.
Dava pequenos passeios pela árvore, e de vez em quando descia para ouvir o Bê contando as histórias de seus livros de aventura.
Pousava no ombro do menino e olhava as figuras, sua imaginação viajava.
Pietro descobriu muitos mundos assim.
Nos livros.
Mesmo sem voar longe, nem alto.
E conheceu, assim, algumas das coisas mais importantes da vida.
A esperança, o amor e a coragem.
Porque, quase tanto como água e comida, a gente precisa de amigos.
A gente precisa que acreditem na gente, para a gente também acreditar.
E é só quando se acredita que se conquista.
As coisas todas, e a maior de todas as coisas, nossa pequena liberdade infinita.
Dani Altmayer