Gira a chave na fechadura
com dificuldade. Afasta do rosto uma teia de aranha, a casa está fechada há
muito tempo. Entra pela porta da cozinha, sempre entrou por ali, descalça
depois de uma brincadeira no jardim, jogando a mochila de livros na volta da escola,
chorando em busca de conforto. Abre as janelas e a luz que vem da rua faz as partículas de poeira dançarem à sua frente, o chão sujo tem marcas de pés e uma
barata morta. Olha para o fogão antigo de seis bocas ao lado do fogão a lenha, lembra das panelas todas
fervendo ao mesmo tempo, chiando, resfolegando. Exalando cheiros diversos.
Feijão, arroz, batata frita, carne assada. Bacon, cebola, torta de maçã. Bolo
de chocolate, calda de morango. Brigadeiro de panela, pipoca, doce de pêssego.
Limonada azeda, é bom para afinar o sangue, menina. Bolo quente com
refrigerante gelado dá dor de barriga. Come mais um pedacinho, está tão
magrinha. Um doce para espantar a tristeza. Uma música no rádio de pilha.
Fofocas dos vizinhos. Uma colher de azeite, para ajudar na digestão. Bala do coco,
feita agora. Suspiros, suspira.
A dona daquela cozinha há
muito se fora. De vez em quando, nos sonhos, ainda consegue sentir suas
mãos ásperas e ouvir a voz rouca do cigarro de palha que compartilhavam
escondidas da mãe, na escada dos fundos de casa, em tantas conversas sem
pé nem cabeça, comendo bolinho de chuva, lambuzando as mãos de açúcar, canela, fritura.
A dona daquela cozinha e dos sabores que agora se derramam em
sua memória, aquela que sabia tudo de si, cada segredo e cada mania sua, sabia tão pouco dela. Será que alguma
vez teria amado? Ela, que conhecia todos os temperos, os chás para as dores
mais diversas, ela que fazia o suco de uva mais doce do mundo, teria ela
conhecido o gosto amargo de um amor de verdade?
A cozinha era o coração
daquela casa gelada, o único lugar onde as janelas e as portas estavam sempre
abertas, onde o sol fazia a festa das violetas e das bromélias, onde o vento
espalhava aromas e pólen, onde a pia brilhava na limpeza caprichada. Ali, na
cozinha, ela queria fazer sua cama, como o velho cachorro que dormia o dia
inteiro ao lado do fogão a lenha. Não deixavam.
O restante da casa era escuro, a mãe não suportava a luz e a música, com suas enxaquecas, e era dura, fria de pedra, tinha aquele cheiro de fechado, cheiro de velho, de coisa vencida que se esquece de jogar fora. Como a mãe, depois que o pai partira.
O restante da casa era escuro, a mãe não suportava a luz e a música, com suas enxaquecas, e era dura, fria de pedra, tinha aquele cheiro de fechado, cheiro de velho, de coisa vencida que se esquece de jogar fora. Como a mãe, depois que o pai partira.
Só na cozinha havia risos. Ali era
onde a menina encontrava alimento e pão quentinho, onde ganhava carinho e puxão de
orelha, rapadura de doce de leite e leite morno bem docinho, bom para afogar mágoa,
minha filha.
A dona daquela cozinha parecia saída de um conto de fadas, como a bruxa do João e Maria às avessas. Ela a alimentara e a engordara aos poucos, em tudo o que não tinha de
resto. Mas ela hoje percebia, sabia tão pouco daquela mulher que amara tanto, que estava sempre
ali, como era para ser e como achava que tinha que ser, a mulher que era sua garantia.
Há muitos anos fora
embora daquele lugar, da despedida só guarda aquele rosto enrugado e o sorriso sem dentes, os olhos
marejados de tristeza e orgulho da sua menina que ia para a faculdade. Levava
na bolsa uma fatia de bolo, broas de milho e um caderninho com as receitas que
anotara com capricho ao longo dos anos. Nunca usara.
Poucas vezes voltou, em
busca daqueles cheiros, de um bife mal passado, de um abraço. De um conselho
que ela já não podia lhe dar. Havia crescido demais para aquele colo e o seu
mundo perdera o alcance daquela cozinha. As visitas foram se espaçando, até que
um dia recebeu a notícia. A alma da casa havia morrido, não viu motivos para retornar,
por longo tempo. Nunca quis descobrir o sabor de um amor não correspondido. Até hoje não quer.
A casa era sua agora, mas sua
vida era outra.
Não percorre as salas
vazias, os quartos, os corredores escuros. Não olha os porta-retratos, nem anda
no jardim de grama crescida e flores em desalinho. Não abre nenhum armário, não
revira gavetas nem memória. Os cheiros, os gostos e os desgostos, estes
estavam todos, há muito, encaixotados.
Apenas deixa-se ficar na
cozinha, de olhos fechados por um instante, pensando nela. Nelas. Depois pega a bolsa,
tira de dentro o velho caderno de receitas e o deposita sobre a mesa de
madeira. Talvez o novo morador tenha mais sorte com ele. Fecha as janelas, uma
a uma, e sai por onde entrou.
Ao trancar a porta da cozinha, a chave agora gira com facilidade.
Dani Altmayer ( escrito em setembro/ 2016)
Ao trancar a porta da cozinha, a chave agora gira com facilidade.
Dani Altmayer ( escrito em setembro/ 2016)
Nenhum comentário:
Postar um comentário